sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Duas Lisboas II

Começamos do alto com esta sobreposição das duas lisboas, a pré-1755 nas manchas a cinzento e a nossa Lisboa actual nas linhas negras. Os nomes de alguns pontos de referências de "antes" estão a cinzento, os de "depois" estão a negro. Este exercício já foi feito em outras ocasiões (a começar pelos planos de reconstrução). Aqui, o mapa pré-1755 é uma síntese minha, a partir do célebre mapa de Tinoco (c. 1650) e completada pelas especulações de Vieira da Silva e de outros em torno das comemoraçãos dos 200 anos do Grande Terramoto em 1955 (comemorações que – é um pouco triste dizê-lo – tiveram mais empenho oficial do que as actuais dos 250 anos). O desenho do mapa (e dos próximos a ser publicados) é da Vera Tavares, que não é minha parente mas é quase como se fosse. A ela o meu agradecimento.
Para já não nos interessam os detalhes. Convido o leitor a observar as manchas que representam o casario e os arruamentos da Lisboa de antes do terramoto. Do lado direito do mapa, a cidade desce a colina oriental da Sé e de Alfama e vemos como a Baixa é o prolongamento natural, "orgânico", dessa Lisboa medieval cristã e também árabe. Repare-se que, ao contrário de hoje, apenas uma rua faz a ligação directa (ou quase) entre o Terreiro do Paço [hoje Praça do Comércio] e o Rossio [hoje Praça Dom Pedro IV]. É a Rua dos Ourives do Ouro, mas ao contrário da actual Rua do Ouro (ou Áurea, como lá está nas placas) é uma rua um tanto sinuosa, que corta obliquamente a Baixa e que tem uma largura irregular. Daqui para a esquerda do mapa começa a subir a colina ocidental que leva ao Chiado, ao Carmo, ao Convento de São Francisco (hoje Faculdade de Belas Artes, Governo Civil de Lisboa e Museu do Chiado) e, finalmente, o Bairro Alto que era já fora das antigas muralhas fernandinas da cidade. As ruas regularizam-se um pouco, os quarteirões são unidades maiores, o número de becos diminui um pouco. Para lá das Portas de Santa Catarina [onde hoje é o Largo das Duas Igrejas, que poucos conhecemos por esse nome, entre o Chiado e Camões] estava o Bairro Alto "de São Roque", onde já havia cidade com planta ortogonal.
Para nos habituarmos à Lisboa de antes de 1755 temos de contrariar alguns dos nossos adquiridos quotidianos (principalmente se formos lisboetas ou conhecermos bem a cidade). Um deles diz respeito ao relevo. E nem sempre os mapas, com os seus modos de casca de laranja esticada, nos fazem o trabalho todo. É preciso pôr a imaginação a mexer. A Baixa de 1755 não era plana, embora o seu relevo fosse naturalmente menos acentuado do que nas colinas que a flanqueavam a nascente e a poente. No entanto, aquelas ruas circulares, aqueles quarteirões trapeizoidais e outras criações ainda menos geométricas não nasceram por acaso, mas também para se afeiçoarem aos altos e baixos do vale. Por isso não podemos olhar para este mapa e imaginar que caminhamos por aquelas ruas como pelas vias planas da Baixa de hoje. Todo o vale foi terraplanado, usando-se os escombros dos antigos prédios para criar o declive suave, quase insensível, que desce do Rossio até ao Tejo. Mas antes de 1755 não precisaríamos apenas de contornar as ruas e evitar os becos para andar por ali; teríamos também de subir e descer, determo-nos para recuperar o fôlego e ter cuidado com as rampas durante a chuva. Paremos agora, finalmente, para podermos imaginar.
Posted by rui tavares on novembro 11, 2005 01:17 AM |

http://ruitavares.weblog.com.pt/2005/11/duas_lisboas

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